Por: Miguel Gerônimo, Mestre em Poder Legislativo e Especialista em Processo Legislativo, foi servidor efetivo da Câmara dos Deputados durante 33 anos.
Conceito e elementos essenciais
No relevante ofício da elaboração legislativa, função essa exercida pelo Poder Público, todos os anos são produzidas inúmeras normas jurídicas em nível federal, estadual, distrital e municipal. Considerando-se que o Brasil ainda carece de normatização de suas necessidades básicas para fazer frente aos anseios da sociedade brasileira, são, periodicamente, inseridas no ordenamento jurídico nacional emendas à Constituição Federal e estaduais, alterações nas leis orgânicas municipais, novas leis, decretos legislativos e resoluções, além do forte incremento normativo realizado pelo Poder Executivo por meio da edição de elevada quantidade de atos regulamentadores.
Para colaborar com a reflexão sobre os aspectos técnicos e políticos que fundamentam essa elaboração legislativa, apresento este artigo sobre Legística – lastreado pelo Livro de minha autoria intitulado Curso de Regimento Interno da Câmara dos Deputados editado pela Edições Câmara -, contemplando, no texto a seguir, os princípios que devem ser observados quando da elaboração dessa diversidade normativa que regula a vida da sociedade.
Nesse contexto, a legística, área do conhecimento relativamente recente no Brasil se ocupa da elaboração das normas, no intuito de dar qualidade aos atos normativos. Segundo Cristas, a legística é o “ramo do saber que visa estudar os modos de concepção e de redação dos atos normativos” (CRISTAS, 2006). Para a autora, trata-se da arte de bem fazer leis, ao reunir um conjunto de fundamentos com objetivo de elaborar a melhor norma possível, a partir de metodologias que visam conciliar a forma e o conteúdo, de maneira a atender com efetividade as demandas da sociedade. Para isso, uma boa norma deve conter a organização sistemática de seus dispositivos, uma boa linguagem, contar com o preparo técnico de quem a elabora, debater a intenção política do legislador, desenvolver a avaliação periódica da norma, entre outros relevantes aspectos.
O que se busca alcançar com a legística é racionalizar a produção legislativa, apoiando-se nas ciências sociais para estabelecer elo com a realidade e com o estudo da comunicação e da linguagem para elaboração das normas. Como o objeto da legística é fornecer bases para formulação de uma lei plena, o que se poderia entender, então, como uma boa lei? Para melhor embasar essa importante indagação, a legística baseia-se em duas dimensões: material e formal.
A legística material preocupa-se com o planejamento, com a necessidade, com a utilidade, com a adequação da norma ao sistema jurídico vigente e com a avaliação legislativa. Para isso, antes da decisão de legislar, necessário se faz realizar uma correta descrição do problema e uma clara definição dos objetivos, a fim de se optar pela melhor solução. Por seu turno, a legística formal estuda a redação do ato legislativo propriamente dito, de modo a garantir clareza e coerência da lei, a fim de torná-la compreensível e linguisticamente correta. Essa formalidade baseia-se, essencialmente, na redação, na sistematização e na simplificação da norma, apoiando-se na consolidação, na codificação e na informatização adequada por meio da legimática (a informática a serviço da legística). Assim, a interação entre essas duas dimensões da legística – a material e a formal – visa à produção de normas adequadas e eficazes para servir à sociedade, pois a legística não atua apenas nas técnicas de uma boa redação, mas principalmente na decisão de legislar, pela verificação da necessidade ou não de se produzir novas leis.
Mesmo a par dos conhecimentos que a legística dissemina, nem sempre é possível produzir-se uma legislação impecável, pois são inerentes ao sistema legislativo limitações de ordem temporal, política, orçamentária, entre outras. Exemplo disso é a dificuldade para realização de ampla pesquisa de campo de modo que se conheça a real necessidade de se disciplinar juridicamente determinada matéria. Considerando que a intervenção normativa nasce de um problema determinado que urge solução, nem toda intervenção junto à sociedade requer a elaboração de nova lei. Muitas vezes, a interferência puramente administrativa é mais eficiente do que a positivação jurídica mediante lei, o que evita o exagero no ordenamento pátrio. Assim, se houver outra forma de ação que dispense a produção de mais uma lei que venha a integrar o sistema jurídico, tal ato, que pode se consignar na área administrativa, é o mais indicado. Isso dissipa, muitas vezes, eventuais confusões por parte do cidadão com o excesso de normas. Este também é o papel da legística: filtrar o que deve ou não se tornar lei.
A fim de antecipar o impacto e a efetividade da norma, surge um elemento essencial da legística material que é a avaliação legislativa. Para Cristas, essa verificação “pretende encontrar elementos da prática social que permitam perceber se certo ato normativo é necessário e que efeito esperado terá ou se cumpriu os objetivos a que se propunha” (CRISTAS, 2006). No caso, dois momentos devem ser examinados: o início e o fim do processo, o que, tecnicamente, se chama, respectivamente, de avaliação ex ante, ou prospectiva, e ex post, ou retrospectiva, ainda que esse movimento seja considerado cíclico.
Nesse contexto, não se deve ter a ilusão de que o Estado monitore todas as normas, dada a diversidade e a enorme quantidade de atos legislativos existentes. Por outro lado, é preciso saber se determinadas leis estão cumprindo os objetivos propostos. É o que se espera da legislação referente às grandes reformas. Isso não significa que, como efeito dessa avaliação, ocorram constantes alterações nas normas, pois, como bem relata Cristas, “as leis precisam respirar, crescer, amadurecer e intervenções excessivamente precoces ou precipitadas podem gerar mais problemas do que aqueles que visam solucionar” (CRISTAS, 2006), visto que, em geral, a estabilidade da lei é algo que deve ser perseguido no sistema jurídico.
Princípios
Os princípios da legística norteiam a produção do ordenamento jurídico, pois arte de elaborar uma boa lei persegue os fundamentos que pavimentam a a normatização, coadunando-se com os interesses da sociedade, por meio de uma legislação melhor e mais completa. Com esse entendimento, são os seguintes os princípios da legística: da necessidade, da proporcionalidade, da transparência, da responsabilidade, da inteligibilidade e da simplicidade.
O Princípio da Necessidade estabelece que só deve ser prescrita uma ação legislativa se for absolutamente indispensável para adoção de uma nova política pública. Isso traduz o entendimento de que, na medida do possível, outras soluções não normativas são preferíveis, pois a não intervenção do Estado em matéria legislativa pode ser mais eficiente e econômica do que a elaboração de uma lei que poderia ser substituída, por exemplo, por uma medida meramente administrativa, mais simples e, na maioria das vezes, com custos menos elevados. Uma campanha pública de esclarecimento e de sensibilização da sociedade pode ser mais eficiente do que mais uma norma inserida no ordenamento jurídico. Como exemplo, em vez de primeiramente se criar uma norma para estabelecer multa para quem joga papel no chão, seria mais sensata, primeiramente, a veiculação publicitária dos malefícios que jogar papel nas ruas causa para o conjunto da população. Se ainda assim o mau hábito da sociedade persistir, então poderia ser estudada a possibilidade de estabelecimento de punição por meio da instituição de regulamentação legislativa.
O Princípio da Proporcionalidade dispõe sobre o alcance do equilíbrio da norma jurídica quanto às vantagens e às obrigações que impõe. Para isso, em regra, esse princípio baseia-se na análise econômica do direito, por meio do método do custo/benefício como ferramenta para subsidiar a tomada de decisão do legislador em relação à inserção no mundo jurídico de mais uma norma para reger as relações da sociedade. Assim, indaga-se se, em um país com elevada carga tributária, haveria espaço para a criação de mais tributos. A suposta alegação de queda da arrecadação tributária para fazer face às despesas estatais nem sempre é um argumento aceito pela sociedade, que preferiria testemunhar providências relativas a mais racionalidade e economicidade nas ações governamentais, como o corte de despesas de custeio para gastos considerados desnecessários, a fim de obtenção de recursos para fazer frente às políticas públicas. No exemplo citado, há que se avaliar o benefício e o custo para o Estado e para os cidadãos com a adoção de um aumento da carga tributária. Nesse sentido, indaga-se se o tributo seria progressivo, ou seja, quem ganharia mais pagaria mais e quem tem menos recursos recolheria menos imposto? Qual seria o custo de fiscalização do pagamento do tributo? Enfim, indagações devem ser levantadas para que haja proporcionalidade entre a adoção de ação legislativa e o peso financeiro para quem viria a arcar com o ônus de financiar o Estado.
Por sua vez, Princípio da Transparência, conforme a própria expressão já indica, refere-se à adequada publicidade do ato legislativo, mediante ampla participação, consulta ou debate com os segmentos da sociedade. Um bom exemplo de instrumento desse gênero são as reuniões de audiência pública realizadas pelas comissões legislativas que têm como objetivo debater matéria legislativa em tramitação, bem como outros assuntos de interesse público relevante. Nesse tema, não se pode perder de vista a importância da internet na divulgação dos trabalhos legislativos. Com efeito, os portais da Casas legislativas e os aplicativos de dispositivos móveis, a exemplo do Infoleg da Câmara dos Deputados, são importantes meios de divulgação e de transparência dos trabalhos da Casa, quando podem ser consultadas informações desde a biografia dos deputados até a tramitação de uma matéria de interesse individual ou coletivo.
O Princípio da Responsabilidade diz respeito à preocupação e ao compromisso que devem pautar a elaboração dos atos normativos, obrigando-se os legisladores e as autoridades públicas pelas ações decorrentes da edição e da aplicação desses atos. Tanto os legisladores quanto os executores devem compartilhar responsabilidades no âmbito das respectivas competências, identificar e garantir os recursos necessários para adequada aplicação e execução da norma, bem como informar à sociedade as dificuldades encontradas na implementação das políticas públicas.
Como deve ser, o Princípio da Inteligibilidade prescreve preceitos referentes à boa técnica legislativa de forma que a legislação seja coerente e bem compreensível por seus destinatários. Para obtenção da clareza, as frases devem ser curtas e concisas, as orações devem ser construídas na ordem direta, sem adjetivações desnecessárias, preciosismos e emprego de neologismos. Deve-se utilizar a uniformidade no tempo verbal e o paralelismo nas construções enumerativas, dosando-se o uso estilístico. Quanto à precisão, dentre outras regras, deve-se privar da utilização de linguagem técnica e de termos em língua estrangeira, salvo quando forem absolutamente necessários. Além disso, devem-se indicar com exatidão os dispositivos objetos de remissão e de revogação. Para observância da inteligibilidade da norma, foi elaborada a Lei Complementar nº 95/1998, a qual regulamentou o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, que previa a normatização para dispor sobre elaboração, redação, alteração e consolidação das leis, instrumento legislativo referente ao aspecto formal das legislações.
Completando os fundamentos elencados, o Princípio da Simplicidade entende que a norma deve ser a mais simples possível, facilitando ao destinatário a compreensão com vistas ao cumprimento da mesma, já que uma legislação muito rebuscada pode dificultar sua integral aplicação, tornando-a dispendiosa e de difícil alcance ao fim a que se destina. Uma legislação bem articulada e com poucos dispositivos (artigos, parágrafos, incisos, alíneas e itens) pode ser vista como bom exemplo do emprego deste importante Princípio, salvo no caso de algumas leis que necessitam de complexidade e de extensão em função de sua própria natureza, a exemplo dos códigos (tributário, civil, penal, processual penal etc).
Conclusão
No limite, a legística ajuda a transformar ideias em leis que realmente “pegam”, melhorando as condições de vida dos cidadãos e diminuindo a distância entre representantes e representados. Popularmente, diz-se que uma lei “pegou” quando ela é efetiva, ou seja, quando produz realmente os efeitos desejados, obtendo o respeito, a aceitação e o cumprimento de seus termos pela sociedade.
Levando-se em conta a “inflação legislativa”, de nosso País, que é o excesso de normas introduzidas no ordenamento jurídico, a Lei nº 13.665, de 2018, (Introdução às Normas do Direito Brasileiro) estabelece no art. 3º que “Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”, motivo pelo qual a elaboração de uma boa lei é uma arte que deve pautar a atuação do legislador federal, estadual, distrital e municipal.