Texto por: Ana Luíza Matos de Oliveira – Economista, Doutora em Desenvolvimento Econômico. Professora Visitante da FLACSO – Brasil.
Durante décadas, a pressão para a redução do gasto público na América Latina, vista como uma forma de ampliar a eficiência e abrir espaço para o setor privado, fez com que na região a questão social se mantivesse cronicamente subfinanciada.
Isto resultou em sistemas de saúde deficitários, saneamento insuficiente e redes de proteção social fracas, como se percebe ao comparar o gasto em saúde per capita (Gráfico 1) ou o acesso ao saneamento básico (Tabela 1) da América Latina com os países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) ou da Zona do Euro. Observando estes dados, não se pode dizer que se investe em patamar suficiente ou com a qualidade necessária.
Gráfico 1 – Gasto geral per capita doméstico do governo (público) em saúde, regiões e país selecionados (US$ correntes) (2000 – 2017)
Fonte: Elaboração própria a partir de OMS
Tabela 1 – Pessoas com acesso a saneamento básico adequado (% da população)
Região | 2000 | 2004 | 2008 | 2012 | 2016 | 2020 |
América Latina e Caribe | 15.2 | 17.6 | 20.9 | 24.6 | 29.0 | 34.1 |
Mundo | 28.6 | 32.1 | 37.2 | 42.8 | 48.6 | 54.0 |
Zona do Euro | 87.9 | 88.2 | 89.0 | 89.8 | 90.8 | 91.3 |
OCDE | 76.8 | 77.8 | 79.6 | 81.5 | 83.4 | 85.0 |
Fonte: Elaboração própria a partir de Banco Mundial
Tais desigualdades no acesso aos direitos sociais impactam no longo prazo. Embora nos anos 2000 tenha ocorrido uma ampliação do gasto social e da infraestrutura social na região, esta não foi suficiente para acabar com as vulnerabilidades da América Latina. Em um quadro mais amplo, a propaganda anti-Estado e contra sistemas públicos de saúde, saneamento, previdência social e proteção social, bem como contra instrumentos para redução das múltiplas desigualdades, colocou entraves para o crescimento do gasto social e para a resolução de problemas históricos, que se agravam com a chegada da pandemia da Covid-19. Com o desfinanciamento do Estado ao longo de anos, os países possuíam menos políticas públicas atuantes para fazer face aos desafios.
Sob a crise da Covid-19, as consequências de anos de reformas e de financiamento restrito são ainda mais visíveis e tem impacto direto em como os Estados respondem às crises e dão suporte aos mais vulneráveis. Durante a crise da Covid-19, os pobres, os informais, as mulheres, os negros, os indígenas, entre outros, foram os que mais sofreram na interseção de diversas desigualdades.
Para estes vulneráveis, o baixo nível de gastos é algo muito concreto: muitos latino-americanos não tiveram acesso a água para lavar as mãos e se higienizar contra o vírus; muitos dividiram espaços pequenos com famílias numerosas, o que dificulta realizar o isolamento social; muitos se veem ainda mais vulneráveis com a fraqueza das redes de proteção social em um contexto de perda de renda. Também, a pandemia de Covid-19 expôs as debilidades do sistema de saúde, percebida tanto pelo baixo nível de gasto público para a área quanto no baixo número de profissionais de saúde em nossa região. Ou seja, as décadas de desfinanciamento da questão social e de falta de priorização da infraestrutura social cobraram seu preço, mas quem o pagou foram especialmente os mais vulneráveis.
Para o caso do Brasil, muitos estudos já mostram que o Estado brasileiro ao realizar gasto social tende a reduzir a concentração de renda. Silveira & Passos (2017), por exemplo, enfatizam a importância dos gastos com saúde e educação, além do gasto com o Programa Bolsa Família e o Regime Geral da Previdência Social, para a redução das desigualdades. Assim, qualquer reforma ou proposta que não leve em consideração que o desfinanciamento da política social é mais prejudicial aos mais pobres não deveria ser nem discutida.
A questão é que, para sair da crise, a proposta da maioria dos economistas brasileiros é apostar novamente na mesma receita do desfinanciamento das políticas sociais como forma de aumentar a confiança do setor privado.
Se queremos de fato combater o aumento das desigualdades sociais, raciais, de gênero etc, será preciso repensar dogmas que embasaram anos de política econômica, discutir como a política econômica impacta a desigualdade e a garantia dos direitos humanos (que inclui também, diga-se de passagem, direitos econômicos e sociais). Colocar a redução das desigualdades no centro da política econômica e no centro da recuperação da economia latino-americana no pós-pandemia. Fora isso, o suposto compromisso com a redução das desigualdades é só da boca pra fora.
Muito bom o texto, Parabéns à autora.
Gratidão!
Grata!
“Colocar a redução das desigualdades no centro da politica econômica e no centro da recuperacao de economia ” esta deve ser a atitude correta a ser exigida pela populacao e tomada pelas autoridades competentes.
De acordo, Sonia!