De tempos em tempos a discussão, normalmente acalorada, sobre o artigo 142 da Constituição Federal da República Brasileira de 1988 é trazida à tona. Isso porque, diante de nossa ainda frágil democracia, há a percepção do senso comum de que as Forças Armadas teriam autorização para interferir nos poderes do Estado.
Ainda que não somente nesses momentos da história, o artigo constitucional supramencionado foi suscitado pelas redes sociais na reunião ministerial de 22 de abril de 2020, nas manifestações ocorridas no dia 17 de maio de 2020 e também no manifesto lançado pelos ex-ministros da Defesa brasileiros.
Ocorre que, como explicaremos no presente texto, tal preceito vem sendo mencionado de forma equivocada e não legitima a intervenção de um poder sobre outro por meio das Forças Armadas. Vejamos:
Recebendo proteção constitucional por meio do Título V, Seção III, contida no Capítulo II denominado “DAS FORÇAS ARMADAS” e dos artigos 142 e 143 da Constituição Federal de 1988, as Forças Armadas podem ser definidas como “o instrumento militar responsável pela defesa do Brasil”.
“Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
- 1º Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas.
- 2º Não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares.
- 3º Os membros das Forças Armadas são denominados militares, aplicando-se-lhes, além das que vierem a ser fixadas em lei, as seguintes disposições:
I – as patentes, com prerrogativas, direitos e deveres a elas inerentes, são conferidas pelo Presidente da República e asseguradas em plenitude aos oficiais da ativa, da reserva ou reformados, sendo-lhes privativos os títulos e postos militares e, juntamente com os demais membros, o uso dos uniformes das Forças Armadas;
II – o militar em atividade que tomar posse em cargo ou emprego público civil permanente, ressalvada a hipótese prevista no art. 37, inciso XVI, alínea “c”, será transferido para a reserva, nos termos da lei;
III – o militar da ativa que, de acordo com a lei, tomar posse em cargo, emprego ou função pública civil temporária, não eletiva, ainda que da administração indireta, ressalvada a hipótese prevista no art. 37, inciso XVI, alínea “c”, ficará agregado ao respectivo quadro e somente poderá, enquanto permanecer nessa situação, ser promovido por antiguidade, contando-se-lhe o tempo de serviço apenas para aquela promoção e transferência para a reserva, sendo depois de dois anos de afastamento, contínuos ou não, transferido para a reserva, nos termos da lei;
IV – ao militar são proibidas a sindicalização e a greve;
V – o militar, enquanto em serviço ativo, não pode estar filiado a partidos políticos;
VI – o oficial só perderá o posto e a patente se for julgado indigno do oficialato ou com ele incompatível, por decisão de tribunal militar de caráter permanente, em tempo de paz, ou de tribunal especial, em tempo de guerra;
VII – o oficial condenado na justiça comum ou militar a pena privativa de liberdade superior a dois anos, por sentença transitada em julgado, será submetido ao julgamento previsto no inciso anterior;
VIII – aplica-se aos militares o disposto no art. 7º, incisos VIII, XII, XVII, XVIII, XIX e XXV, e no art. 37, incisos XI, XIII, XIV e XV, bem como, na forma da lei e com prevalência da atividade militar, no art. 37, inciso XVI, alínea “c”;
IX – Revogado pela Emenda Constitucional nº 41/2003
X – a lei disporá sobre o ingresso nas Forças Armadas, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inatividade, os direitos, os deveres, a remuneração, as prerrogativas e outras situações especiais dos militares, consideradas as peculiaridades de suas atividades, inclusive aquelas cumpridas por força de compromissos internacionais e de guerra.
Art. 143. O serviço militar é obrigatório nos termos da lei.
- 1º Às Forças Armadas compete, na forma da lei, atribuir serviço alternativo aos que, em tempo de paz, após alistados, alegarem imperativo de consciência, entendendo-se como tal o decorrente de crença religiosa e de convicção filosófica ou política, para se eximirem de atividades de caráter essencialmente militar.
- 2º As mulheres e os eclesiásticos ficam isentos do serviço militar obrigatório em tempo de paz, sujeitos, porém, a outros encargos que a lei lhes atribuir.”
Diz o primeiro artigo sobre o tema, o qual foi escolhido para o presente texto em seu caput, que as Forças Armadas são compostas por Exército, Marinha e Aeronáutica, de forma organizada e subordinada, sob a autoridade do Chefe do Poder Executivo Federal e se destinam a defender o Brasil, os poderes constitucionais, bem como a lei e a ordem:
O artigo subordina, assim, o poder militar ao civil ao dizer que estão sob a autoridade do Presidente da República e demonstra que a força militar está submetida à vontade da Constituição e suas mudanças, de forma que os militares devem garantir “os poderes constitucionais” e não são maiores do que as aspirações dela.
De forma sintetizada, Ives Gandra Martins defende e explica que existem três as atribuições das Forças Armadas, “alicerçadas na hierarquia e disciplina, a saber:
- Defesa da pátria;
- Garantia dos poderes constitucionais;
- Garantia da lei e da ordem, por iniciativa de qualquer dos três Poderes.”
Logo, não há qualquer possibilidade ou legitimação, por este ou qualquer outro preceito contido na Constituição Federal de 1988, de intervenção ou criação de um novo poder estatal além daqueles já conhecidos: Judiciário, Legislativo e Executivo.
E ao mesmo tempo, não é possível que haja qualquer possibilidade de utilização dos artigos acima mencionados, ou de qualquer outros, para tentar sustentar qualquer ato ligado à intervenção militar por parte do Poder Executivo.
No caso de ameaças graves a estabilidade do país, há a previsão de importantes mecanismos de defesa institucional como o estado de sítio, o estado de defesa e a intervenção federal (artigo 21, inciso V c/c artigo 49, inciso IV c/c artigo 84, incisos IX e X c/c art. 90, inciso I c/c artigo 91, §1º inciso II).
Ocorre que nenhum deles dá poderes às Forças Armadas a agirem de maneira decisória definitiva ou sem qualquer respaldo dos demais poderes existentes. Vejam:
Art. 136. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza. (…)
Art. 137. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos casos de:
I – comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa;
II – declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira. (…)
Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:
I – manter a integridade nacional;
II – repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra;
III – pôr termo a grave comprometimento da ordem pública;
IV – garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação;
V – reorganizar as finanças da unidade da Federação que:
a) suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior;
b) deixar de entregar aos Municípios receitas tributárias fixadas nesta Constituição, dentro dos prazos estabelecidos em lei;
VI – prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial;
VII – assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:
a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático;
b) direitos da pessoa humana;
c) autonomia municipal;
d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta.
e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde.
Art. 35. O Estado não intervirá em seus Municípios, nem a União nos Municípios localizados em Território Federal, exceto quando:
I – deixar de ser paga, sem motivo de força maior, por dois anos consecutivos, a dívida fundada;
II – não forem prestadas contas devidas, na forma da lei;
III – não tiver sido aplicado o mínimo exigido da receita municipal na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde;
IV – o Tribunal de Justiça der provimento a representação para assegurar a observância de princípios indicados na Constituição Estadual, ou para prover a execução de lei, de ordem ou de decisão judicial.
Sobre o assunto da suposta permissão para intervenção militar prevista na Carta Constitucional, é importante relembrar e frisar que a Constituição Federal de 1988 foi escrita em um contexto pós regime militar, após a expansão do autoritarismo ocorrido entre os anos de 1964 a 1974, a ascensão e o fim do milagre econômico ocorrido nos anos 70, o início da abertura política brasileira e a realização da Assembleia Constituinte que durou aproximadamente 19 (dezenove meses).
Assim, como dito por Roberto Dias “essa interpretação de que esse artigo seria uma autorização para uma intervenção militar é absurda”. “É como se a Constituição previsse sua própria ruptura, e logicamente é algo que não faz sentido. É uma interpretação jurídica, política e logicamente insustentável”, diz ele.
Nesse contexto, até mesmo a Secretaria-Geral da Mesa da Câmara dos Deputados emitiu um parecer esclarecendo, explicando de forma didática e ressaltando que não há qualquer autorização para as Forças Armadas a arbitrarem conflitos entre Poderes, documento este elaborado logo após as manifestações de maio de 2020.
CONCLUSÃO
O artigo 142 estabelece que as Forças Armadas não são um novo poder estatal, estando subordinadas ao Presidente da República e são destinadas a defender a Pátria, os poderes constitucionais e por iniciativa de qualquer um desses, a lei e a ordem.
O conteúdo deste, ou de qualquer outro artigo dessa mesma Carta, não prevê qualquer possibilidade ou direito de intervir em outros poderes, criar um novo Poder Moderador ou de intrometer-se nos órgãos e papéis previstos do Supremo Tribunal Federal, Câmara dos Deputados, Senado Federal, Ministérios de Estado ou em qualquer outro instrumento existente.
Pode-se concluir, portanto, que a possibilidade de romper com a ordem constitucional atualmente vigente em nosso país por meio do ordenamento jurídico-constitucional é falsa, sendo extremamente necessário que se entenda o que a Constituição Federal traz em seu texto, demonstrando o seu valor, seu papel, as regras a serem seguidas bem como demonstram a sua necessidade em um Estado Democrático de Direito.
Graduada em Direito e Especialista em Direito Processual Civil e Argumentação Jurídica pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e Mestranda em Ciências Jurídico-Políticas, especialidade Direito Constitucional, pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL).
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Muito bom e esclarecedor
Excelente texto, como é bom ter conhec imento.
Não aceito está argumentação com relação ao artigo 142, não sou perito em Direito. Um ex-presidiário que não foi julgado, assumir a presidência do nosso pais só no Brasil !!