Em tempos pandêmicos, nós nos acostumamos a falar quase que diariamente de fármacos, vacinas, medicamentos, equipamentos de proteção individual (EPIs) e afins. Por isso, se faz necessário que discutamos a indústria farmacêutica no Brasil.
Uma rápida pesquisa realizada no acervo do Estadão, um dos principais jornais do país, evidencia que, enquanto em uma década (2010-2019), o termo fármacos apareceu 276 vezes em suas publicações (gráfico 1), somente no ano de 2020 e nesses 6 meses de 2021, foram 108 menções. E as notícias sobre o tema não param de aumentar. Nesses poucos meses, praticamente alcançamos o número de 2020, com 50 aparições contra 58 do ano anterior.
Gráfico 1 – Número de vezes que o termo fármacos apareceu em publicações de O Estado de São Paulo (2010-2019).
Fonte: Acervo Estadão, 2021.
Gráfico 2 – Número de vezes que o termo fármacos apareceu em publicações de O Estado de São Paulo (jan/2020 – jun/2021).
Fonte: Acervo Estadão, 2021.
O que isso significa? Significa que a indústria farmacêutica está no centro das atenções e nunca foi tão importante entendê-la, principalmente para quem trabalha com análises econômicas e políticas.
Histórico da indústria farmacêutica no país
Os primeiros laboratórios de pesquisa surgiram no país ainda na virada do século XIX para o XX. São exemplos o Instituto Butantan (1899) e o Instituto Soroterápico Federal de Manguinhos (1900). Apesar disso, o desenvolvimento da indústria farmacêutica no Brasil deu-se de forma tardia e sofreu alguns reveses ao longo de sua história, com alternâncias entre projetos desenvolvimentistas de cunho nacionalista, que investiram na consolidação das empresas nacionais, e políticas desenvolvimentistas associadas ao capital externo, que abriram as portas para a entrada de empresas estrangeiras do setor, com maior expertise e condições de investimento, o que levou à quebra de diversos concorrentes nacionais.
De acordo com a Fiocruz, a partir dos anos 1960, como consequência dessas políticas de abertura, a atuação da indústria farmacêutica nacional remanescente viu-se limitada à importação de tecnologias e mão-de-obra estrangeira. Eram executadas no Brasil apenas as etapas menos complexas do processo produtivo, como a formulação final e a sua comercialização.
Ainda segundo a Fiocruz, toda a pesquisa e desenvolvimento (P&D) dos medicamentos continuava nas mãos das empresas multinacionais. O efeito disso foi uma indústria farmacêutica nacional frágil, com pouco conhecimento técnico, baixa capacidade de pesquisa e forte dependência externa. Em outras palavras, as empresas farmacêuticas brasileiras caracterizaram-se historicamente por serem grandes importadoras de insumos provenientes do exterior. Em um primeiro momento, esses fármacos eram provenientes de países europeus, como Itália e Espanha, e, posteriormente, com o forte desenvolvimento da indústria farmoquímica indiana, o Brasil passou a se voltar para esse gigante asiático.
A indústria brasileira praticou, nesse sentido, a engenharia reversa, copiando fórmulas de medicamentos produzidos por companhias estrangeiras que investiam em inovação e fabricando medicamentos similares.
As mudanças na legislação brasileira, durante os anos 1990, com a aprovação da Lei 9.279/96, que disciplinou a Propriedade Industrial no país, e o lançamento da Política Nacional de Medicamentos, em 1998, responsável, entre outros, por regular os medicamentos genéricos no país, foram importantes marcos.
Ainda hoje a indústria farmacêutica brasileira caracteriza-se pela presença de empresas multinacionais, que realizam aqui as etapas de menor valor agregado dentro do processo produtivo: formulando e embalando os princípios ativos que importam de outros países.
A indústria farmacêutica brasileira em perspectiva
Como alertam especialistas da área, o setor químico-farmacêutico constitui um dos maiores desafios brasileiros da atualidade. Por necessitar de vultosos investimentos, avanços substanciais só poderão ser alcançados mediante a concretização de uma parceria que envolva, governo, empresários e pesquisadores com altíssimo nível de formação¹.
São algumas as contradições desse setor no país. Ao mesmo tempo que o mercado interno brasileiro de medicamentos aparece entre os dez maiores do mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), a indústria farmacêutica brasileira é extremamente dependente de importações e apresenta uma balança comercial deficitária. Mais de 90% da demanda interna por insumos farmacêuticos ativos (IFAs) é suprida por importações, de acordo com a Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (ABIQUIFI), o que comprova a vulnerabilidade do setor no país.
A Resolução RDC nº 250, de 13 de setembro de 2005, estabeleceu o Programa de Insumos Farmacêuticos Ativos – IFAs, que prevê as diretrizes que determinam a regulação sanitária dos insumos comercializados em todo território nacional. A medida buscou fazer o controle de qualidade dos IFAs importados e nacionais. Segundo relatório do governo brasileiro, o processo de inspeção internacional teve início em outubro de 2010.
Os dados do relatório, publicado em 2020, cobrem o período de 2010 a 2019. Como podemos verificar no gráfico abaixo, considerando todos os insumos farmacêuticos cadastrados na ANVISA, segundo o país de fabricação, 78% foram produzidos na China (48%) e na Índia (30%). Países do centro desenvolvido, como Itália e Espanha, aparecem empatados em terceiro lugar, com apenas 5%. Suíça e Alemanha apresentam números ainda mais baixos: 2%.
Gráfico 3
Estima-se que o mercado de insumos farmacêuticos vá continuar crescendo nos próximos anos. Segundo a Consultoria Internacional Mordor Intelligence, o mercado de insumos farmacêuticos ativos foi avaliado em aproximadamente USD 174,96 bilhões em 2020. A expectativa é de que ele alcance USD 245,88 bilhões em 2026.
Ao mesmo tempo, a previsão é de que o consumo de medicamentos no Brasil também vá seguir aumentando nos próximos anos. Essa é a aposta do IQVIA Institute for Human Data Science. Segundo o Global Medicine Spending and Usage Trends, elaborado pelo IQVIA, entre 2014-2019, houve crescimento de 9,9% nos gastos com medicamentos no Brasil. Entre 2020 e 2024, a taxa de crescimento deve se manter entre 6 e 9%, acima da média mundial (Tabela 1).
Tabela 1
Fonte: Global Medicine Spending and Usage Trends, 2020.
Dados que, quando cruzados, evidenciam a necessidade de se pensar a transformação dessa indústria no país.
¹Rodrigues, Paulo Henrique Almeida, Costa, Roberta Dorneles Ferreira da e Kiss, Catalina. A evolução recente da indústria farmacêutica brasileira nos limites da subordinação econômica. Physis: Revista de Saúde Coletiva [online]. 2018, v. 28, n. 01 [Acessado 2 Julho 2021], e280104. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0103-73312018280104>. Epub 24 Maio 2018. ISSN 1809-4481. https://doi.org/10.1590/S0103-73312018280104.