Por: Ana Luíza Matos de Oliveira – Economista, Doutora em Desenvolvimento Econômico.
Com muita frequência, ressurge no campo progressista o debate sobre uma suposta incompatibilidade entre análises sobre classe e aquelas sobre raça e gênero no Brasil. Neste 8 de março, gostaria de utilizar este espaço para relembrar as contribuições de 3 importantes pensadoras sobre as relações de classe, raça e gênero no Brasil, que mostram como o nosso país se baseia em desigualdades muito profundas e que se retroalimentam.
Heleieth Saffioti
Argumentou que, embora as desigualdades de gênero e raça sejam anteriores ao capitalismo, o capitalismo se utiliza das diferenças de sexo e raça para hierarquizar a força de trabalho e aliviar as tensões sociais que ele mesmo cria (como o subemprego, o desemprego, diferenças salariais entre brancos e negros e entre homens e mulheres).
Com o surgimento do capitalismo, a separação entre o local de trabalho produtivo e reprodutivo e o aumento da produtividade proporcionado pelo desenvolvimento da indústria aloca as mulheres a situações de “inatividade econômica”, ou seja, as mulheres passam a realizar majoritariamente somente o trabalho doméstico e de cuidados. Nesse sentido, Saffioti afirma que a dona de casa surgiu simultaneamente ao proletário.
Ao mesmo tempo, mulheres negras seriam responsáveis pelo trabalho produtivo e reprodutivo, muitas vezes realizando trabalho reprodutivo em troca de um pagamento para uma família branca e depois fazendo o trabalho doméstico também para sua família. Dessa forma, o sistema desvaloriza habilmente tanto o trabalho produtivo das mulheres, já que este não é seu “trabalho principal”, quanto o reprodutivo, que seria o principal mas é feito por “razões naturais” ou “por amor”.
Saffioti também destaca que o papel atribuído às mulheres brancas (pureza, fragilidade e, portanto, não aptidão para o trabalho produtivo) antagoniza a parte atribuída às mulheres negras (de promiscuidade e brutalidade para o trabalho pesado, seja produtivo, doméstico e ou sexual).
Lélia González
É conhecida pelo conceito de Améfrica Ladina ou Amefricanidade. No primeiro, combinam-se os conceitos de América, África, Latino e Ladino. No último mistura América e África e destaca o impacto da população negra na formação de toda a cultura da América Latina. Ela argumenta que todos os brasileiros (e não apenas os negros) são ladinoamefricanos e essa negação das raízes negras do país explica como o racismo se volta contra aqueles que são a testemunha viva desse fato – a população negra – ao mesmo tempo em que se declara uma ‘democracia racial’.
No mesmo sentido em que existe uma divisão sexual do trabalho na sociedade brasileira, González identifica uma divisão racial do trabalho na sociedade brasileira. Não é ‘coincidência’ que a maioria dos negros brasileiros seja marginalizada pelo desemprego, informalidade, precariedade etc., respondendo a grande parte da relativa superpopulação de trabalhadores. Portanto, assim como a força de trabalho feminina funciona como uma “zona tampão”, sendo ativada e desativada de acordo com o ciclo econômico, o mesmo acontece com os negros. Desta forma, o privilégio racial privilegia não apenas o capitalismo branco, mas também a população branca pobre, ao confinar a população negra a posições inferiores e abrir oportunidades para brancos pobres.
González argumenta que a mulher negra não foi educada para ser submissa como a mulher branca. Em vez disso, ela foi educada para ser dura e apoiar seus filhos. Num profundo sentido de interseccionalidade, ela argumenta que a mulher negra é objeto de dois tipos de desigualdades que a tornam o setor mais inferiorizado da sociedade brasileira, tanto como trabalhadora quanto como mãe e companheira, lutando sozinha para sustentar os filhos, enquanto seu companheiro, alvo da brutalidade policial, está morto ou preso, ou desempregado ou vítima de alcoolismo. A mulher negra, segundo a autora, só não cai por seu “espírito de quilombola”.
Sueli Carneiro
Destaca que o Brasil foi o cenário das violações sexuais perpetradas por homens brancos contra mulheres negras e indígenas. A miscigenação que dela decorre é a base da nossa identidade nacional, estruturando o mito do Brasil como uma ‘democracia racial’. Essa violência sexual contra as mulheres negras foi a “cola” para todas as hierarquias de gênero e raça em nossas sociedades, ao mesmo tempo em que negou o papel das mulheres negras na formação da cultura nacional.
Carneiro, citando Lélia González, argumenta que o feminismo teve barreiras em relação às mulheres negras por possuir uma visão eurocêntrica e por omitir o caráter central da questão da raça nas hierarquias de gênero. Isso resulta em uma incapacidade de reconhecer diferenças e desigualdades no universo feminino.
Em uma sociedade pluricultural, multirracial e racista como a brasileira, o racismo tem um impacto profundo nas relações e hierarquias de gênero. Nesse sentido, a pobreza a que os negros no Brasil ainda estão condenados até hoje faz parte da estratégia racista de naturalização de uma inferioridade social. Carneiro argumenta que as mulheres negras e indígenas têm demandas específicas que não podem ser consideradas apenas sob a ótica de gênero se não considerar as especificidades de ser mulher. A “variável” racial, segundo ela, tem produzido grupos subalternos, com uma identidade feminina estigmatizada (mulheres negras) e masculinidade subalterna (homens negros) com menos prestígio que a de mulheres brancas. Homens negros e homens brancos, no entanto, só estão unidos sob cumplicidade sob o machismo.
Por isso, Carneiro discute a necessidade de enegrecer o feminismo, o que significa marcar a agenda do movimento de mulheres com o peso da raça na configuração da violência de gênero, demografia, doenças, mercado de trabalho, feminização da pobreza etc., que mantêm as desigualdades e os privilégios entre mulheres brancas e negras.
Considerações finais
Heleieth Saffioti, Lélia González e Sueli Carneiro também nos auxiliam na compreensão dos papéis de gênero no trabalho doméstico na atual pandemia. As três intelectuais apontam como as desigualdades de gênero e raciais são estruturais na sociedade brasileira e como as desigualdades são justificadas. Essas características estruturais podem ser a razão pela qual o modelo da divisão sexual do trabalho prevalece mesmo quando seus limites intrínsecos são visíveis, como é o caso da pandemia: infelizmente, o poder do patriarcado, que relega as mulheres a uma posição subalterna e impõe socialmente que as mulheres sejam as responsáveis pelo trabalho doméstico e de cuidados, segue firme. O trabalho doméstico e de cuidados, se não remunerado, continua a ser tratado como algo fora do Produto Interno Bruto, como “forma de amor”, como obrigação social feminina.
Já passou da hora de que o trabalho não remunerado das mulheres no lar e sua contribuição para o sistema econômico (e todas as consequências da divisão sexual do trabalho) sejam contabilizados, reconhecidos e que as desigualdades de gênero e raciais em relação sejam abolidas.
Mas a economia segue sendo um campo extremamente hostil para as mulheres, tanto para as mulheres economistas quanto para discutir os temas de gênero. Agora, em ano de eleição, lemos sobre a (quase) nula representatividade de mulheres, negros e indígenas na discussão de programas de governo, mesmo de candidatos do campo progressista. Até quando?