Por: Ana Luíza Matos de Oliveira – Economista, Doutora em Desenvolvimento Econômico. Professora Visitante da FLACSO – Brasil.
Muito tem se escrito sobre o fim do premiadíssimo Programa Bolsa Família (PBF) e o que podemos esperar do Auxílio Brasil (AB), que surge em sua «substituição». Tratei deste tema recentemente aqui e com outros colegas também aqui, em recente Boletim do Grupo de Acompanhamento de Temas Estratégicos do Instituto Lula.
O Brasil é um país conhecido por fortes desigualdades sociais, que permanecem mesmo com a modernização e o crescimento econômico. Seu passado e presente de exploração da população negra, indígena, das mulheres e também de uma visão um tanto quanto «colonialista» em relação ao Norte e ao Nordeste compõem este panorama atual de vulnerabilidade e desigualdade, agravado por um desfinanciamento da questão social no país, como costumo abordar nesta coluna. Mas com o fim da ditadura militar em 1985, o quadro parecia mudar.
Em 1988, foi promulgada a Constituição Federal de 1988, chamada de «Constituição Cidadã», que garantia uma série de direitos sociais e estabeleceu a responsabilidade do Estado em assegurar o direito do cidadão a serviços socioassistenciais e a garantia de uma renda monetária não-contributiva, no âmbito da seguridade social. Mas, ao mesmo tempo em que garantia uma série de direitos sociais, a Constituição foi confrontada com a realidade dos anos 1990 na América Latina, em que as ideias de inspiração neoliberal, por pressão do chamado «Consenso de Washington» se impuseram. Esta realidade atrasou a implementação de políticas de garantia de renda no Brasil.
Nos anos 1990, criou-se no Brasil um arcabouço fragmentado de programas de ação assistencial no âmbito do governo federal, com o Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Cartão Alimentação e Auxílio-Gás. Esses programas tinham uma disparidade de objetivos, critérios de acesso e valores diversos e baixos, além de uma gestão fragmentada, o que elevava a concorrência interburocrática e os custos operacionais. Diante dos problemas já mencionados, em 2003 buscou-se unificar os programas de transferências com a criação do Programa Bolsa Família (PBF). O PBF, que teve expansão rápida até 2012, sofreu queda substancial de sua cobertura entre outubro de 2016 e julho de 2017 com Temer, bem como de maio de 2019 a março de 2020 com Bolsonaro. Esta redução ocorreu enquanto a pobreza também aumentava.
E, então, chega a crise provocada pela pandemia da Covid-19, que amplia o crescimento da pobreza e da fome no Brasil, em especial por seu elevado impacto no setor informal da economia. É criado, então, o Auxílio Emergencial (AE).
Em meados de 2021, o governo Bolsonaro começa a falar, em fazer modificações mais profundas no PBF, transformando-o em um programa denominado Auxílio Brasil (AB). O mais grave é que o PBF foi descontinuado sem que fossem apresentados os estudos que baseiam as mudanças realizadas.
Apesar de ser muitíssimo necessário apoiar os mais vulneráveis neste momento de crescimento da pobreza e da fome, o Auxílio Emergencial e o Auxílio Brasil têm sido utilizados como subterfúgio para ampliar ainda mais a pressão para a redução do papel do Estado no desenvolvimento econômico e para o ataque à Constituição Cidadã como um todo (para aquilo que resta, em ambos os casos). Por exemplo, a pretexto de retomar o pagamento do AE no início de 2021, o governo chantageou o congresso para a suposta necessidade da aprovação da PEC Emergencial (efetivamente aprovada como EC 109/2021), que aprofunda a austeridade fiscal no país. Também o Auxílio Brasil é uma ameaça à Constituição Cidadã por forçar a volta ao esfacelamento e à desarticulação do sistema de proteção social, principalmente daquele ligado a assistência social, já fragilizado pela austeridade e pelo “primeiro-damismo” e “filantropismo”, que enxerga a assistência social como caridade. Volta-se, em certo sentido, ao quadro da década de 1990, por acabar com a previsibilidade em torno da política e reduzir o espaço de autonomia dos beneficiários, da sociedade e dos demais entes federados. Ou seja, com as recentes mudanças em curso, há muita coisa em risco na proteção social, mas não só nela: os riscos são mais profundos e ainda mais abrangentes, capazes de impactar as próprias bases da Constituição Cidadã.