Ciente da predição de um oráculo de que seria destronado por um de seus filhos, Saturno, divindade representativa do tempo na mitologia romana, a fim de evitar a concretização de seu destino fatal, devorava seus filhos recém-nascidos para se manter no poder celestial. O olhar de puro tormento, o vívido ato de canibalismo, sangue, escuridão, insanidade e ruína, são elementos muito bem retratados pelo artista espanhol Francisco de Goya (1746/1828) para recompor esta passagem mítica. Além de seu forte alcance psicanalítico, esta obra é uma representação muito eloquente dos limites do “poder”, afinal, até onde se pode chegar para se manter no topo?
Na continuação da narrativa mitológica, em resumo, Saturno é enganado por sua esposa e por isso não devora um de seus filhos, Júpiter. O destino acaba sendo selado e o deus do tempo é finalmente destronado e aprisionado no Tártaro. Aqui até vale a liberdade da reflexão: se um dia Maquiavel descreveu as formas de conquista e sustentação do poder político, Goya e a mitologia romana talvez tenham bem retratado os custos deste esforço.
Tratando-se do mundo real, pudemos acompanhar mais um capítulo da novela do poder político brasileiro na última semana em Brasília. O agora ex-Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, pediu demissão do cargo nesta sexta feira (24/04). O motivo: discordância da maneira como foi conduzida a exoneração de seu braço direito na Polícia Federal, Maurício Valeixo, além da falta de razões objetivas por parte do presidente Jair Bolsonaro em proferir tal decisão.
Há pouco mais de 10 dias, o agora ex-Ministro da Saúde, Luís Henrique Mandetta, anunciava sua demissão do ministério. O motivo: ter entrado em rota de colisão com os ditames do presidente Bolsonaro em relação à forma como deveria ser gerida a crise da pandemia do novo coronavírus. Vale lembrar também da demissão do general Santos Cruz da Secretaria de Governo em junho do ano passado, cuja motivação para tal também se deu, grosso modo, por desalinhamento político com setores do próprio governo.
A semelhança entre esses dois últimos casos? A prévia fritura por parte do bolsonarismo nas redes sociais, que ao menor sinal de desalinhamento político ou de narrativa de algum ministro junto ao presidente, cria uma atmosfera de confrontação, de exposição negativa e até de desmoralização das figuras visadas. Hashtags como “#ForaMandetta” e “#ForaSantosCruz” foram amplamente disseminadas nas redes sociais, não pela oposição, mas pelos partidários do próprio governo.
Vale dizer que a formulação de um inimigo invisível e de momento é benéfica para o presidente Bolsonaro, que aprendeu muito bem a forjar sua base política através da confrontação. Ele depende deste tipo de ambiente para prosperar enquanto liderança de um espectro político que se alimenta do enfrentamento. Bolsonaro e sua base sempre estão em constante processo de retroalimentação. Um depende do outro.
A construção de inimigos, nessas condições, se mostrou como ferramenta muito eficaz na ascensão do Bolsonarismo. O antipetismo, por exemplo, canalizou de maneira muito clara as forças de contraposição num único ente, o Partido dos Trabalhadores (PT). Deu muito certo eleitoralmente, sobretudo em 2018. Essa mecânica também deu certo na contraposição ao ex-Ministro Mandetta, mesmo quando esse contava com Organização Mundial da Saúde (OMS) para respaldar seu posicionamento na forma de combate ao Covid-19.
O problema, entretanto, é que tudo indica que a fritura de Sérgio Moro não foi e não será efetiva. O até então “Superministro da Justiça”, espécie de símbolo do combate à corrupção nos tempos em que era juiz federal e julgava os casos vinculados à Petrobras na Operação Lava-Jato, servia como uma das principais bases de apoio do governo.
A coletiva de imprensa prestada por Moro na manhã do dia 24 de abril, não apenas marcou sua saída, como também foi significativa de uma série de acusações que podem implicar Jair Bolsonaro de várias formas. Do ponto de vista político, as acusações possuem um apelo ideológico até cruel. Bolsonaro manifestou ao longo das eleições de 2018 e na montagem inicial de seu governo, um posicionamento de consideração de que as indicações que faria seriam absolutamente baseadas em caráter técnico-político, chamando inclusive tal postura como uma “nova política”. Sérgio Moro sugeriu, todavia, que o presidente estava interferindo no comando da Polícia Federal por razões puramente pessoais. Esta situação não apenas contradiz Bolsonaro, como também o põe em rota de colisão no que se refere ao seu apelo ideológico em relação as suas bases, que sempre foram alimentadas a seu favor.
Sérgio Moro goza de um prestígio junto ao bolsonarismo que o torna uma figura dificílima em ser transformada em inimiga. Definitivamente a direita está rachada com sua saída.
Neste ponto, me permitam a reformulação da narrativa mitológica: se Bolsonaro antes devorava seus ministros ao menor sinal discordância política para se manter como símbolo perfeito de representação do espectro político de que faz parte; Sérgio Moro, entretanto, pode se tornar o seu Júpiter, o filho não devorado, a representação de sua ruína.
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Arthur Ives
Integrante da Metapolítica, bacharel e mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), atualmente é doutorando em Sociologia Política por essa mesma instituição. Atua no monitoramento e na formulação de estratégias de atuação junto ao Poder Legislativo.