A Constituição Federal de 1988 define em seu artigo 6º que saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados são direitos sociais do povo brasileiro conjuntamente com uma das mais importantes garantias contidas no nosso ordenamento jurídico: a educação.
Mais à frente, por meio do artigo 205 da Lei Fundamental, há a previsão de que a educação é “direito de todos e dever do Estado e da família” e que “será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
Isso significa dizer que o importante tema da educação é amparado não apenas pelas leis municipais, estaduais, distritais e federais, mas também é constitucionalmente prevista como um dever do Estado brasileiro e obrigação de todos, de forma a preparar pessoas aptas a serem cidadãos e bons trabalhadores.
O homeschooling, entendido superficialmente como o ensino domiciliar, é um projeto do atual Governo e também por meio de alguns projetos de lei já existentes nas casas legislativas é assunto que vem sido discutido no nosso país, sendo importante que se tragam definições e façamos algumas diferenciações de conceitos para que seja formada nossa própria opinião sobre o assunto.
O QUE É HOMESCHOOLING?
Para os estudiosos no assunto, Maria Celi Chaves Vasconcelos e José Carlos Bernardino Carvalho Morgado embora o “homeschooling seja a denominação mais utilizada para identificar esta pretensa modalidade de educação no ambiente doméstico, a sua tradução, para o português, não se pode dar de forma literal, pois não significa escolarização em casa, mas sim os processos de escolaridade que ocorrem nos espaços privados, sob a responsabilidade dos familiares e sem a interferência direta do Estado.”
Em outros termos, é uma modalidade educacional que defende que crianças e adolescentes sejam “retirados” do ambiente escolar tradicional para serem educados pelos seus parentes, normalmente, seus pais, em ambientes mais confortáveis e seguros – normalmente, dentro de suas casas – onde há um maior controle e personalização do que ocorrerá com seus filhos e o que será aprendido por eles.
Segundo a mesma professora, há um perfil específico de famílias que se beneficiaria da regulamentação do ensino domiciliar ou que até mesmo, por alguma razão, já praticam essa modalidade no nosso país, sendo visíveis que são “aquelas que podem ser consideradas ligadas a uma religião, (…) até a famílias com estilos de vida alternativo.”, bem como aquelas “famílias que viajam constantemente, que têm crianças que necessitam de atendimento especializado, que têm filhos que sofreram bullying na escola”.
Assim, podemos definir esse tipo pedagógico como a possibilidade de os familiares (ou pessoas por eles escolhidas) educarem e ministrarem aulas a suas crianças – normalmente filhos – em um ambiente “protegido”, suas casas, e majoritariamente longe do ambiente escolar formal e de tudo aquilo que tal atmosfera pode proporcionar aos menores – convivência com o diferente, habilidades sociais, interação com novos ambientes, entre outros.
A VISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
O RE 594.018 AgR, julgado pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal em 07 de agosto de 2009 entendeu que a “educação é um direito fundamental e indisponível dos indivíduos.”, e que é “dever do Estado propiciar meios que viabilizem o seu exercício.”.
Ocorre que, o STF também já foi requisitado a decidir sobre o tema específico do ensino domiciliar aqui discutido e com relação ao assunto, a mais alta Corte brasileira, por meio do RE de número 888.815 relatado pelo Ministro Alexandre de Moraes publicada em 21 de março de 2019 entendeu que a Constituição de 1988: “não veda de forma absoluta o ensino domiciliar, mas proíbe qualquer de suas espécies que não respeite o dever de solidariedade entre a família e o Estado como núcleo principal à formação educacional das crianças, jovens e adolescentes. São inconstitucionais, portanto, as espécies de unschooling radical (desescolarização radical), unschooling moderado (desescolarização moderada) e homeschooling puro, em qualquer de suas variações.”
E continua, ao preceituar que:
“4. O ensino domiciliar não é um direito público subjetivo do aluno ou de sua família, porém não é vedada constitucionalmente sua criação por meio de lei federal, editada pelo Congresso Nacional, na modalidade “utilitarista” ou “por conveniência circunstancial”, desde que se cumpra a obrigatoriedade, de 4 a 17 anos, e se respeite o dever solidário Família/Estado, o núcleo básico de matérias acadêmicas, a supervisão, avaliação e fiscalização pelo Poder Público; bem como as demais previsões impostas diretamente pelo texto constitucional, inclusive no tocante às finalidades e objetivos do ensino; em especial, evitar a evasão escolar e garantir a socialização do indivíduo, por meio de ampla convivência familiar e comunitária (CF, art. 227)”
Portanto, o STF declarou que o ensino é responsabilidade do Estado brasileiro conjuntamente com a família e com o entendimento de que o homeschooling no Brasil é prática que não está de acordo com os preceitos contidos na CF/88, ainda que não seja de forma absoluta, logo, uma vez que “não existe direito público subjetivo do aluno ou de sua família ao ensino domiciliar,” já que até aquele momento era “inexistente na legislação brasileira.”legislação que tratasse sobre o tema.
A VISÃO DA CÂMARA DOS DEPUTADOS
Tendo em vista que o STF julgou uma ação sobre o tema e determinou o que resta descrito acima sobre a educação domiciliar no Brasil, porque não havia nenhuma regra prevista no sistema jurídico que regulamentasse o assunto, caberia ao Congresso Nacional discutir aprovar (ou não) uma lei federal sobre o ensino domiciliar.
A inserção do ensino domiciliar na legislação educacional no nosso país é tema controverso, cheio de nuances e extremamente complexo.
Nesse sentido, o projeto aprovado na Câmara dos Deputados em maio de 2022 e que ainda vai ao Senado Federal para ser votado pelos nossos representantes, qual seja, o Projeto de Lei 2.401/19 prevê, entre outras questões, pré-requisitos aos pais, dá novas tarefas às escolas e cria exigências pedagógicas importantes sobre o assunto.
Sobre isso, de forma sintetizada, restou descrito pelo PL, que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente e a lei que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional (Lei nº 9.394/1996), e decidido pelos deputados federais que:
– a pessoa indicada para educar deve apresentar diploma de ensino superior ou de educação profissional tecnológica,
– a pessoa que vai se prestar ao papel de transmitir o conhecimento à criança não pode ter condenações por crimes hediondos, contra crianças e adolescentes ou violência doméstica,
– é necessário o registro dos alunos em estabelecimentos de ensino que ofereçam a modalidade de educação domiciliar,
– os alunos serão submetidos a avaliações anuais,
– que no caso de duas reprovações, o aluno deve ser inserido no ambiente escolar tradicional.
Assim o tema vem sendo debatido pelos parlamentares da Câmara dos Deputados já há algum tempo, o que pode ser visto especialmente por meio do PL nº 3.179/2012, mas só no ano de 2022 foi que a discussão realmente se tornou mais próxima da realidade, especialmente devido às evidentes modificações sociais causadas pela pandemia do coronavírus. Existem alguns modelos e modalidades do ensino domiciliar no mundo ocidental, como por exemplo, através das distintas normas existentes nas realidades portuguesa e estadunidense.
CONCLUSÃO
Pode-se concluir que o assunto envolve, ainda que não somente isso, o papel do Estado, da família e seus reflexos sociais. Caso deliberados e sancionados pelas casas legislativas federais, os projetos ligados ao homeschooling devem amparar aqueles envolvidos e que por diversas razões venham a optar por essa modalidade de ensino e gerarão novas discussões político-jurídicas no âmbito dos Tribunais, uma vez que a família, segundo consta a Constituição de 1988, não pode ser a única responsável pelo ensino das crianças.
Por fim, vale ressaltar a importância de uma ampla discussão com a sociedade acerca deste tema, para que assim sejam tomadas decisões sobre a questão, sendo levado em conta o que prevê o ordenamento jurídico brasileiro, a Base Nacional Comum Curricular e, considerar o que as instituições oficiais de ensino e o ambiente escolar representam na formação de cidadãos trabalhadores, bem como seu papel social, educativo, político e socializante.
Mais informações:
Artigo “Desafios è escolarização Obrigatória”
Graduada em Direito e Especialista em Direito Processual Civil e Argumentação Jurídica pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e Mestranda em Ciências Jurídico-Políticas, especialidade Direito Constitucional, pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL).