Por: Ana Luíza Matos de Oliveira – Economista, Doutora em Desenvolvimento Econômico. Professora Visitante da FLACSO – Brasil.
A discussão sobre desigualdades de gênero e raciais virou “mainstream”, ou seja, já não se leva a sério o posicionamento de uma pessoa se ela nega a existência e o absurdo destas disparidades estruturais. Muito se fala sobre preconceito, barreiras no mercado de trabalho, trabalho doméstico etc, o que é algo certamente muito louvável. O problema é que a discussão sobre tais desigualdades muitas vezes fica restrita ao âmbito da política social, sobre como uma política social X ou Y seria possível reduzir esta ou aquela desigualdade. Mas não é apenas a política social que influencia a desigualdade: a política econômica é um componente importantíssimo da perpetuação ou da redução das desigualdades. Nossos analistas econômicos com maior espaço na mídia ainda não perceberam que, para reduzir tais desigualdades, será preciso repensar dogmas, entre eles os tais dogmas das “reformas estruturantes”.
Quanto a “reformas estruturantes”, não me refiro às necessárias reforma agrária, reforma tributária (com vistas à justiça fiscal), reforma política, entre outras, mas sim às reformas tidas como consenso e vendidas como imprescindíveis para a população, como foi o caso da reforma fiscal (Emenda Constitucional 95, o “teto de gastos”) em 2016, da reforma trabalhista em 2017, da reforma da previdência em 2019 e da reforma administrativa, que tramita atualmente. Nestas reformas, a discussão sobre desigualdade esteve (e está) ausente ou, quando aparece, é feita de forma enormemente superficial. Se o Estado brasileiro reconhece a desigualdade como um grande problema, inclusive com princípios da Constituição Federal que posicionam formalmente o Estado como responsável pelo combate às desigualdades, por que o tema fica ausente na discussão sobre reformas estruturantes?
Por exemplo, quanto à reforma administrativa e a desigualdade social, no debate público a questão da desigualdade fica resumida a uma discussão sobre o salário do servidor, se é este alto ou não ou argumentos deste tipo. O papel importante do servidor como prestador de serviços públicos fica de lado.
Muitos estudos já mostram que o Estado brasileiro ao realizar gasto social tende a reduzir a concentração de renda. Silveira & Passos (2017)[1], utilizando-se da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), atribuem um valor ao gasto social para as famílias, que atua como uma espécie de subsídio ou de aumento da renda das famílias, já que ao receber um serviço público através do Estado elas “economizam”. Os pesquisadores decompõem este efeito do gasto social no coeficiente de Gini para diferentes estágios de renda e enfatizam a importância dos gastos com saúde e educação, além do gasto com o Programa Bolsa Família e o Regime Geral da Previdência Social, para a redução das desigualdades.
Especificamente sobre a educação, recentemente a Campanha Nacional pelo Direito à Educação divulgou um estudo que mostra que o aumento de investimento na educação pública entre 2001 e 2015 ajudou a distribuir renda no Brasil, mas a queda dos gastos nos últimos anos acende alerta para aumento da desigualdade. O documento calculou indicadores sintéticos das distribuições das rendas “anterior” (antes da inclusão do investimento com educação) e “posterior” (após essa inclusão). O índice de Gini da renda posterior é sempre menor, indicando o efeito redistributivo do investimento em educação básica. Mostra-se também que os 40% mais pobres foram sempre os mais beneficiados pelo investimento público em educação, visto que, embora representem 40% da população, sempre receberam uma fração maior que 40% do investimento público.
Assim, qualquer reforma precisa ser avaliada à luz dos mecanismos de geração e redução de desigualdades. Fica o convite, então, para que olhemos as reformas a partir do viés da desigualdade: a reforma X, em tal aspecto, aumenta ou reduz a desigualdade de gênero? E em tal aspecto, aumenta ou reduz a desigualdade racial? Assim, assumindo que a redução das desigualdades é um objetivo de fato a ser perseguido (e não um discurso vazio), poderemos começar a pensar a política econômica a partir dos interesses e das necessidades da população brasileira.
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